quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Raio de uma Voz

 Brota o sonho no ventre húmido da vontade selvática, que estilhaça e oblitera, que destrói e enforma. Ilusão angélica de liberdade sem grilho, grito da fera que se não doma nem enjaula por ser corpo do desenfreio e da voz guerreira que por não ser não morre nem emudece. Nasce a luminescência incandescente, que luminosamente incandesce na mente titã do poeta trovador, profeta do espírito voraz, de presas e líricas garras armado, com votos ocos prometidos em grinalda que atirada flutua no sangue da mente comatosa que se esvai, lenta, preguiçosamente rumo à nulidade alienante. Voa no ar inquieto da descrença o torcionário silêncio que mais acusa que entorpece, é a penitência diferida da carne necrosada da alma piamente cortada, da sodomia persignada.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Cresce na sombra do desmazelo do espírito, o sonho da vida acordada que se dilui no sangue que escorre pelos lábios descarnados do conhecimento impuro e violado pelo vazio da Razão ignorada. Apenas pela mente insana o impossível toma corpo e passa a ser. Apenas pela imaginação desenfreada o terreno torna-se divino e a celestial ilusão da inferioridade humana é mutilada e queimada nas chamas da própria inverdade.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Bardo do Sonho Sem Rosto

 Vejo ao cimo o sol, tu que brilhas, um fulgor que aos meus olhos se apaga, como ode que definha num choro sem voz. Cintilas sobre as nuvens de outros tempos, de outras areias que correram e que já preguiçam em ser. Ardes alto, onde não chego, longe do meu toque que enregela o mais quente beijo... oh, luxuriante beijo que te vais sem antes aos meus lábios te revelares. Sol tímido, morna e tépida incandescência que nos meus sonhos suspirados tomas corpo, mas foges... Rugido emudecido, penosa sorte que amargamente se encorpora e me pesa nos ombros que me custam a manter direitos, quando tu, ó monarca ardente da bondade espinhosa, me esqueces ao beco desta ruela abandonada a que chamam a dádiva divina... Esbanjas esse teu esgar áureo sobre o que já ofusca e a mim...a mim esqueces-me, nem sombra tenho de espectral que para ti sou, numa vala por aqui e por ali perdida num pulsar que morre sem ter da terra brotado. Fosse o meu espírito pedaço inteiro, para ti bradava palavras fracas mas minhas de saudade e força que se me desvanece, com o teu brilho que não chega, ó sol pulsante, que te ouço no meu peito, ó dia que te apagas. Não vás, ainda eu não te olhei...sol no meu peito que teimas em me não ver. Canção dos pedintes do amor sem esmola, é o que me sibilas...lá no cume dos montes de safira, brilhas, ardes em esplendor que me recusas. Talvez um dia...quando em mim alma estilhaçada não morar e lágrimas minhas, essas, para ti são.

                                                                                                                        Filipe Pimentel

terça-feira, 23 de abril de 2013

Genealogia

 Sou um ser do infortúnio, um bastardo do acaso e da circunstância vaga. Sou uma existência em declínio, um respirar sem propósito de regresso ao nada de onde vim, à nulidade da origem disforme e longínqua que me ensombra e me enforma. Sou criação do passado e cinza do tempo por vir.

                                                                                                      Filipe Pimentel

(Sem Título)

 Valliant suspirou pesadamente. Sentia a visão turva das lágrimas, mas o que sentia não era tristeza. Não. O que sentia era algo diferente. Um sentimento de dor imerso na chama incandescente de uma raiva profunda e vingativa.
 Baixou os olhos para a fotografia dos pais que descansava sobre as pernas. Os seus sorrisos pareciam desvanecer-se no ar frio daquela manhã de Outono. O cabelo da mãe caía sobre os ombros estreitos numa cascata de canudos negros e brilhantes que emolduravam  um rosto alvo de feições meigas e delicadas.O seu pai, de envergadura larga e braços fortes, sorria-lhe por entre o farto bigode minuciosamente escovado e perfeitamente simétrico. Numa das mãos segurava uma espingarda de caça, e com a outra envolvia a cintura pronunciada da mulher.
 Ainda se lembrava de quando eles discutiam por causa do que a mãe chamava de "actividade cruel e primitiva". Sir Jonathan Valliant assegurava-lhe que os animais não sofriam, que um tiro certeiro poupáva-lhes a dor, mas Camille resmungava e o pai, para acabar com a discussão, dava-lhe sempre um beijo rápido nos lábios e dizia-lhe que a amava. Camille corava de todas as vezes que isso acontecia e, enquanto do enorme pórtico via o marido afastar-se no carro em direcção ao grande portão da herdade, murmurava "também te amo" para a brisa matinal.
 A memória fez com que os cantos da boca de Valliant se contorcessem no prenúncio de um sorriso que rapidamente morreu sob a luz dourada do nascer do sol.

                                                                                                       Filipe Pimentel

Portugal

Vivo num Portugal escuro sob um sol europeu que ignora quem debaixo do telhado de zinco se abriga. Um Portugal deitado ao Tejo, afogado nas ondas apressadas da tímida traineira que passa. É um Portugal que adormece entre os vapores da uva fermentada e os prantos afónicos que se perdem nas tascas de Alfama. Portugal que vive na lembrança apática de um heroísmo amnésico. Eu, português de um Portugal que sufoca nas páginas de Camões, que se dilui nas lágrimas de Inês, que escorre por entre as pedras imundas da calçada desfeita. Portugal que é levado pela brisa de um suspiro lusitânico, de impotência e saudade do tempo que passou. Portugal de intelectualismos sem voz e de génios sem identidade, de ideologias amorficamente empoeiradas e de moralidades ocas.


                                                                                                     Filipe Pimentel