terça-feira, 23 de abril de 2013

(Sem Título)

 Valliant suspirou pesadamente. Sentia a visão turva das lágrimas, mas o que sentia não era tristeza. Não. O que sentia era algo diferente. Um sentimento de dor imerso na chama incandescente de uma raiva profunda e vingativa.
 Baixou os olhos para a fotografia dos pais que descansava sobre as pernas. Os seus sorrisos pareciam desvanecer-se no ar frio daquela manhã de Outono. O cabelo da mãe caía sobre os ombros estreitos numa cascata de canudos negros e brilhantes que emolduravam  um rosto alvo de feições meigas e delicadas.O seu pai, de envergadura larga e braços fortes, sorria-lhe por entre o farto bigode minuciosamente escovado e perfeitamente simétrico. Numa das mãos segurava uma espingarda de caça, e com a outra envolvia a cintura pronunciada da mulher.
 Ainda se lembrava de quando eles discutiam por causa do que a mãe chamava de "actividade cruel e primitiva". Sir Jonathan Valliant assegurava-lhe que os animais não sofriam, que um tiro certeiro poupáva-lhes a dor, mas Camille resmungava e o pai, para acabar com a discussão, dava-lhe sempre um beijo rápido nos lábios e dizia-lhe que a amava. Camille corava de todas as vezes que isso acontecia e, enquanto do enorme pórtico via o marido afastar-se no carro em direcção ao grande portão da herdade, murmurava "também te amo" para a brisa matinal.
 A memória fez com que os cantos da boca de Valliant se contorcessem no prenúncio de um sorriso que rapidamente morreu sob a luz dourada do nascer do sol.

                                                                                                       Filipe Pimentel

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